O processo de educação básica das crianças guarani-kaiowá
Autor é o Tonico Benites-Guarani-Kaiowá, mestre e doutorando em antropologia do MN/UFRJ/RJ.
Os povos guarani-kaiowá são resistentes pelo fato de ter vivido até hoje, praticando os seus rituais religiosos, profanos e falando a sua língua materna. Sobretudo, o povo guarani-kaiowá continua educando as crianças conforme o seu modo de ser e viver autêntico e específico teko porã.
A base de organização social do povo guarani-kaiowá é centrada na família extensa. A família extensa é formada por pelo menos três gerações: avô, avó, filhos e filhas, genros e noras, netos e netas. Esta organização social é administrada e representada por um líder político e um xamã ou líder religioso que perdura até os dias atuais.
No passado, cada família extensa vivia de forma autônoma no seu território ancestral de controle exclusivo e residia numa única habitação grande construída nas cabeceiras das minas da água e próximo dos rios, distanciando-se dez (10) e vinte (20) quilômetros de outra grande família. Nesta habitação e no seu entorno os adultos educavam os jovens e as crianças, sendo as atividades cotidianas educativas divididas segundo o sexo e a idade. Recentemente, após o processo de aldeamento/confinamento da família extensa ocorreu o desaparecimento da casa grande que não significou uma mudança na centralidade desta organização da família extensa.
A família extensa é fundamentada na prática de reciprocidade e bela conversa. Aqui a reciprocidade significa, antes de tudo, a base de estabilidade e proteção no sentido emocional-afetivo, sobretudo fonte de alegria da criança. Como metodologia educativa, é transmitida a ideia de pertencimento à determinada família, fundamentada no princípio de dar e receber alguns bens materiais e imateriais. Esta prática educativa começa com as crianças e é reforçada no decorrer do processo de formação do jovem e do adulto.
Desse modo, os integrantes que são os responsáveis diretos pela educação (como pais e mães) são orientados pelos líderes (avó e avô) da família no sentido de vigiarem e avaliarem, além de repreenderem quaisquer atitudes consideradas incongruentes com as regras da família extensa. Neste sentido, há grande preocupação em garantir a construção e a fixação da personalidade e sua adequação ao estilo comportamental vivido pela família extensa.
Nos processos de transmissão de conhecimento, as lideranças e os suportes agregadores e protetores, como o avô e a avó, o pai e a mãe das crianças são pessoas fundamentais, com autoridade para intervir nos problemas internos conforme as normas morais já estabelecidas. Essas pessoas são consideradas “líderes-orientadores” legítimos pelos membros internos.
Tais “líderes-orientadores” ocupam-se em coordenar as atividades educativas cotidianas, educar e/ou orientar os comportamentos e as atitudes corretos teko porã das crianças. São divididos em dois grupos: o primeiro deles é composto pelas mulheres, subsidiado pelos homens; o segundo é constituído pelos homens. O primeiro grupo é determinante na educação das crianças. Todas as tarefas educativas são supervisionadas rigorosamente pelas lideranças e adultos mais experientes.
No âmbito da família extensa, para ensinar as crianças e os jovens de modo correto, é feita uma classificação das crianças por ciclo de crescimento, considerando-se os diversos momentos por que passam as crianças. São levados em consideração o estado e a característica de cada alma gradativamente assentada no corpo da criança, observando-se a sua força e a sua fraqueza, visto que a condição da alma é a condição vital para o bom desenvolvimento da aprendizagem e do crescimento saudável do corpo da criança.
Durante o primeiro ano de vida, antes de a criança pisar no chão, a alma é extremamente instável e insegura; transita entre o corpo e o lugar de origem, localizado no universo do Cosmo Guarani.
A outra fase começa com o primeiro contato com o chão, ao rastejar e andar, ao reproduzir a fala e se comunicar. Nesse período, as crianças ganham liberdade vigiada, mas somente no espaço familiar, sob o olhar da mãe, da avó e de todos (as) integrantes da família.
Segue-se a fase de fazer a imitação do comportamento e a reprodução de frases ou ideias do adulto. Esta fase é considerada a mais delicada e preocupante, porque é o início da imitação, da reprodução e da incorporação de qualquer comportamento e atitude, sejam eles positivos ou negativos.
Por isso, a educação da criança nesta última fase é rigorosamente monitorada pela mãe, pela avó e pelos demais integrantes da família. As crianças de ambos os sexos permanecem com a liberdade vigiada para circularem, brincarem juntos no espaço exclusivo da família extensa, locais onde a observação direta é feita continuamente pela mãe e pela avó.
É na casa da avó e avô que as crianças passam diariamente a maior parte do seu tempo, sendo ela considerada como um importante centro de encontro diário da família para conselhos, informações, entretenimento e conciliação. É um lugar de alegria e risos, gerados pela interação entre as crianças e os adultos. As crianças com mais idade estão também disponíveis, a serviço da família, frequentemente levando e trazendo algo comestível e recados entre os seus diversos integrantes.
Neste contexto interno da família, as crianças maiores cuidam das menores, de modo que todas são educadas juntas nestes mesmos espaços, por meio de práticas educativas que servem para todas as crianças, até 12 anos de idade, de ambos os sexos.
A liderança feminina está inter-relacionada, por meio de diálogo frequente, com a liderança masculina. Estes homens, com o aval das mulheres, planejam as atividades diárias, indo à procura de satisfazer as demandas e precisões da família, sobretudo as necessidades urgentes, indicadas pelas mulheres, tais como entre elas a alimentação e as vestimentas, visto que as demandas femininas e as das crianças são priorizadas pelos homens.
Todos esses líderes da família extensa são o suporte vital para a criança e o jovem vir a posicionar-se como membros de uma organização social. Esses líderes são continuamente procurados pelos seus agregados com o intuito de buscar soluções possíveis para problemas cotidianos, assim como pelo apoio afetivo emocional, segurança e os recursos materiais.
A lógica educativa decorre de uma situação de aconselhamento individual, coletivo e diálogo diário com os seus membros sobre o modo de ser e viver adequado no contexto atual.
No passado, os líderes femininos e masculinos das famílias extensas eram, em sua maioria, basicamente xamãs e os seus auxiliares.
Por fim, hoje em dia, nem todos os líderes-suporte de cada família extensa são xamãs, mas eles agem fundamentalmente de modo muito similar aos anteriores, sendo caracterizados como pessoas religiosas, pacientes, acolhedoras, que de fato possuem também vasta experiência de ouvir, comunicar-se, educar e aconselhar as crianças, respeitando as distintas faixas etárias. Embora os espaços territoriais e contextos anteriores tenham mudado ao longo do tempo, em parte o modo de ensinar as crianças permanece como era no passado, isto é, o ensino doméstico é realizado através do método oral, repetitivo e contextualizado, baseado nos interesses reais de cada família extensa contemporânea.
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